A história do voo livre

O sonho de voar habita o imaginário do homem desde os primórdios.

A história mais antiga sobre um voo planado pode ser encontrada na mitologia grega. Para fugir do labirinto onde estavam presos, Ícaro e seu pai Dédalo constroem asas artificiais com cera de abelha e penas de gaivotas. Ícaro, apesar de ter sido alertado por seu pai sobre voar próximo ao Sol, tomado pela sensação de liberdade, voou muito alto e o Sol derreteu a cera de suas asas causando sua queda no mar Egeu.

Imagem

“Ícaro”, de Hendrik Goltzius.

Durante muito tempo, o domínio dos ares foi considerado uma dádiva divina, da qual somente os deuses e alguns animais poderiam desfrutar. Até que este anseio começou a se materializar na forma de estudos embasados por conhecimento científico que rumavam em direção à concretização do sonho de voar.

Leonardo Da Vinci, em pleno período renascentista, foi um dos que se dedicaram a conceber máquinas que levariam o homem aos céus.

Imagem

Desenho de Leonardo DaVinci.

Imagem

Desenho de Leonardo DaVinci.

Os primeiros homens voadores

Foram muitos os pioneiros da asa delta que arriscaram a vida, a integridade física, a reputação e a fortuna, com o objetivo de voar. Existe também muita controvérsia sobre os voos bem-sucedidos. Porém, uma coisa é certa: a investigação destes pioneiros sobre a aerodinâmica foi fundamental para o desenvolvimento da aviação e do voo livre.

Sir George Cayley é um desses pioneiros que desenhou e construiu planadores dirigíveis. Cayley, que é considerado um dos primeiros engenheiros aeronáuticos, nasceu na Inglaterra e construiu em 1804 um planador de aparência moderna que tinha uma asa em formato de pipa na frente e uma cauda ajustável na parte traseira. Ele escreveu um artigo intitulado “Sobre Navegação Aérea” que foi publicado no Jornal de Filosofia Natural, Química e Artes de Nicholson entre 1809 e 1810. Neste artigo, enumera os elementos-chave para um voo bem sucedido:  sustentação, arrasto e impulso.

Imagem

Planador de Cayley.

Em 1849, Cayley constrói um planador que é voado por um menino de 10 anos de idade. Em 1953, um empregado de Cayley torna-se o primeiro adulto a fazer um voo planado. Uma réplica deste equipamento foi feita em 1973 para um programa de TV. O piloto corajoso desta vez foi Derek Piggott.

Imagem

Réplica do planador de Cayley feita em 1973.

Antes disso, em 1757, um inventor francês fez o primeiro salto de paraquedas de que se tem notícia. Louis-Sébastien Lenormand saltou da torre do observatório Montpellier na frente de várias testemunhas usando um paraquedas de 4 metros feito com uma estrutura de madeira.

Imagem

Em 1783, os irmãos Joseph-Michel Montgolfier e Jacques-Étienne Montgolfier fizeram um voo de 2 km em um balão de ar quente construído com tecido preso com botões e com 3 camadas de papel por dentro.

Imagem

O alemão Otto Lilienthal foi o primeiro a realizar voos planados sem cabos ou cordas. Ele realizou cerca de dois mil vôos planados entre 1891 e 1896, atingindo em alguns cerca de 350 metros de distância. Várias vezes, ele conseguiu subir mais alto que o seu ponto de partida. Otto morreu no dia 10 de agosto de 1896 por conta das lesões de uma queda de planador sofrida no dia anterior.

Imagem

Otto Lilienthal em voo.

Já em 1948, o americano Francis Rogallo, que trabalhava na NACA (National Advisory Committee for Aeronautics), agência que antecedeu a NASA, criou e patenteou uma asa flexível. O objetivo da invenção era criar uma aeronave simples e barata o suficiente para que qualquer um pudesse ter. Esta asa foi o equipamento precursor da asa delta e do parapente. Uma curiosidade que vale ser notada é que os membros da associação americana de asa delta e parapente são chamados membros-rogallo.

Imagem

Asa flexível de Rogallo (Parawing).

O voo livre como conhecemos hoje, teve início na Austrália e seu precursor foi o engenheiro e inventor John Dickenson. John havia lido sobre a invenção de Rogallo e, inspirado, construiu a asa delta moderna em 1963, abrindo as portas para um novo esporte. Bill Moyes era seu piloto de testes. O sistema de controle de pêndulo por mudança do centro de massa era bastante intuitivo e a asa era fácil de voar. Quase 50 anos depois de sua criação, a asa de Dickenson ainda é a base para as asas mais modernas.

No início as decolagens eram feitas com skis na água. Em 1969, Bill Moyes fez a primeira decolagem de uma montanha. No mesmo ano, Bill fez um voo de lift em uma montanha.

Imagem

John Dickenson preparando-se para decolar.

Enquanto isso, ainda nos anos 60, o americano David Barish que trabalhava como consultor em aerodinâmica para a NASA, desenvolve um paraquedas com melhor performance em termos de planeio. Seu paraquedas tinha uma superfície única de tecido e um planeio de 4,2/1. Apesar de ter tido conhecimento sobre a invenção de Rogallo, Barish começou seu trabalho de forma diferente porque não tinha interesse em usar estruturas rígidas em seu paraquedas.

David, movido por sua própria curiosidade e interesse, leva seu equipamento para o alto da montanha Hunter em Nova Iorque e decola em 1965. Ele realiza diversos voos desta montanha e de outras. Nasce assim o esporte que na época era chamado de “slope soaring”.

Imagem

David Barish praticando o slope soaring.

Paralelamente, em 1964, o canadense Domina Jalbert solicita a patente de um paraquedas cujo velame é composto por células feitas com uma superfície dupla (intradorso e extradorso) para gerar o efeito de asa.

Na França alguns paraquedistas decidem decolar de monatanhas com seus paraquedas. Estes paraquedas, talvez por influência das descobertas de Barish e Jalbert, já tinham desenho moderno com formato retangular e superfície dupla. No dia 5 de maio de 1979, é fundado o primeiro clube de parapente: “Les Choucas”, que está em atividade até hoje, e em 1988, o clube anteriormente afiliado à Federação Francesa de Paraquedismo, afiliou-se À Federação Francesa de Voo Livre.

Voo livre no Brasil

O voo livre chega ao Brasil através do francês Stephan Dunoyer de Segonzac que realizou a primeira decolagem de asa delta no Rio de Janeiro em 1974. Algumas fontes dizem que o primeiro voo foi feito do Cristo Redentor, mas o relato de um cinegrafista amador mostra que houve um voo na semana anterior feito de um local entre a Pedra Bonita e a Agulhinha, possivelmente do local onde é hoje a rampa de São Conrado. O voo foi filmado e está disponível online em http://www.youtube.com/watch?v=pSe6fDXlkLY&feature=player_embedded. Este cinegrafista trabalhava no escritório do Sérgio Bernardes, dono do terreno da Pedra Bonita naquela época e o responsável pela construção da estrada que dá acesso à rampa até hoje. O francês tinha ido ao escritório de Sérgio Bernardes para pedir autorização para realizar o voo.

O primeiro brasileiro a voar de asa delta foi o carioca Luis Claudio Mattos em 7 de setembro de 1974. Em novembro de 1975, o número de pilotos já era mais de uma dezena e resolveram então realizar o 1o campeonato Brasileiro de Vôo Livre.

O parapente foi trazido ao Brasil pelo suíço Jerome Saunier em 1985 que fez o primeiro voo de parapente da pedra Bonita, no Rio de Janeiro. Jerome ainda mora no Brasil, em Canoa Quebrada, e voa até hoje.

1.031 km… Haja Red Bull!

Foi definida a rota do Red Bull X-Alps deste ano e é a mais longa já planejada para esta competição.

Rota oficial do Red Bull X Alps 2013.

Rota oficial do Red Bull X Alps 2013

De Salzburgo a Mônaco, o novo percurso tem quase 200 km a mais do que 2011. O motivo é a definição de novos pilões, que passou de 8 (2011) para 10 este ano. O novo caminho fará um ziguezague pelos Alpes.

Assim como em 2009 e 2011, o Red Bull X-Alps terá início em Salzburg, na Áustria. Após o start, os pilotos seguirão para Hoher Dachstein (2.995 m) e de lá em direção oeste através do Parque Nacional Hohe Tauern até o Wildkogel (2.224 m).

De lá, os atletas deverão seguir para Zugspite, que é a montanha mais alta da Alemanha, com altitude de 2.962 m. Neste trecho terão que ficar bastante atentos por conta da zona de tráfego aéreo de Innsbruck.

Após este trecho, devem voar para o sul passando pela região de Ortler e então para oeste em uma das seções mais longas da prova até Interlaken na Suíça.

Após este trecho, tem início a parte mais bonita dessa cansativa viagem que permite apenas caminhar ou voar. Os voadores passarão então pelo Bernese Oberland até o Matterhorn, que fica a 4.478 m de altitude.

Event Participant - Flying

A corrida passa então pelo Mont Blanc (4.810 m) e segue a oeste para St. Hilaire. Depois, os corredores que ainda estiverem no jogo devem seguir  para o trecho final.

A corrida termina em Mônaco e o Mediterrâneo aguarda os pilotos para um merecido descanso a beira mar.

A prova

O Red Bull X Alps tem início no dia 7 de julho e deve ser terminada em no máximo x dias. A rota passará pela Áustria, Alemanha, Itália, Suíça, França e terminará em Mônaco. Só é permitido caminhar ou voar e os atletas devem ficar atentos às regras de espaço aéreo locais. Caso o espaço aéreo proibido seja invadido, os competidores podem ser penalizados com tempo obrigatório de espera de 24 horas.

A novidade este ano é que os atletas poderão contar com dois apoios em vez de apenas um. Além disso, o período de descanso obrigatório é mais longo – de 22h30 às 5h – e haverá um “passe noturno” que permitirá que o atleta prossiga na corrida a pé durante a noite. Os atletas chegam a fazer 100 km a pé em um dia ou, com boas condições de voo, mais de 200 km de parapente.

O time vencedor levará para casa 10 mil Euros. O segundo e o terceiro levam 5 e 3 mil respectivamente. E os participantes que chegarem ao final até o décimo lugar também não sairão de mãos vazias, levando o prêmio de 1,5 mil euros.

História da Competição

O X Alps surgiu da ideia de Hannes Arch. Hannes havia visto um documentário na TV no qual o piloto alemão Toni Bender cruzava os Alpes de norte a sul em um parapente, carregando todo seu equipamento, dormindo ao relento e caminhando nas partes onde não podia voar.

Hannes Arch - Lifestyle

A primeira prova ocorreu em 2003 e teve início em Dachstein, mas tinha apenas 2 pilões, o Mont Blanc e o Mont Gros, próximo a Mônaco. Apenas 3 pilotos de um total de 19 chegaram ao final: Kaspar Henny  (Suíça, 11 dias 22 horas e 55 minutos), David Dagault (França, +5h25) e Stefan Bocks (Alemanha, +8h45).  O Príncipe Albert de Mônaco presenteou os 3 times que conseguiram com a medalha olímpica de Mônaco.

Em 2005 foi adicionado um terceiro pilão – o Zugspitze na fronteira da Alemanha com a Áustria. Kari Castle e Niki Hamilton foram as primeiras mulheres a fazer parte. Competiram 17 atletas e 4 chegaram ao gol. Os suíços levaram a melhor: Alex Hofer venceu com o tempo de 12 dias 1 hora e 20 minutos, Urs Lotscher chegou 25 horas depois, seguido por Kaspar Henny.

Em 2007, 30 times se inscreveram e os pilões incluíram Dachstein (start), Marmolada, Eiger e finalmente o Mont Gros em Mônaco. O piloto suíço Martin Muller foi o mais rápido, mas sofreu uma penalidade de 36 horas por invadir espaço aéreo proibido. Alex Hofer venceu a prova pela segunda vez, seguido pelo atleta romeno Toma Coconea. Muller chegou em terceiro.

Em 2009, o start foi transferido para o centro de Salzburg, com o primeiro pilão em Gaisberg logo fora da cidade. Esta se revelou uma corrida emocionante e o favorito Alex Hofer foi vencido por Chrigel Maurer. Chrigel chegou a Mônaco em 9 dias, 23 horas e 54 minutos, cobrindo 1.379 km a pé e 818 km em voo. Alex Hofer completou a prova em segundo e Honza Rejmanek (Estados Unidos) em terceiro.

Em 2011, a prova teve 864 km de percurso e 32 atletas participaram. Chrigel Maurer venceu mais uma vez, apesar da penalidade sofrida de 24 horas de espera por invasão de espaço aéreo. Ele chegou a Mônaco em 11 dias, 4 horas e 52 minutos e fez 1.312 km voando e 486 km a pé. Toma Coconea chegou em segundo, mas demorou 14 dias para completar a prova. Paul Guschlbauer (Áustria) estava a apenas 9 km da linha de chegada e ficou em terceiro. Alex Hofer, que seria uma dos favoritos não participou devido a um acidente sofrido na Itália.

Christian Maurer (SUI1) - Hiking

Live tracking

Este ano todos os competidores do Red Bull X-Alps usarão um equipamento de transmissão ao vivo da Flymaster com firmware desenvolvido exclusivamente para esta competição pelo brasileiro Durval Henke.  A novidade é a transmissão da contagem de passos por minuto, batimento cardíaco do piloto, força G, velocidade (tubo de Pitot) e outros dados.

Competições: Mudanças à vista

De 13 a 17 de fevereiro aconteceu Lausanne, na Suiça, o plenário do CIVL que definiu novas regras para as competições de parapente.

Plenário CIVL em Lausanne, Suiça.

Plenário CIVL em Lausanne, Suiça.

O assunto principal do plenário de 2013 foi a implementação de uma nova categoria de competição, a CECC (CIVL EN Competition Class). Esta nova categoria terá testes de certificação simplificados de modo que o procedimento seja mais rápido e barato, permitindo assim que as velas de todos os tamanhos sejam certificadas. O documento completo pode ser lido neste link. Foi acordada uma limitação nas proporções de tamanho da vela. Esta nova regulação entra em vigor para eventos de Cat 1 a partir de janeiro de 2015.

Junto com esta mudança, foi instituída também uma nova regra de End of Speed com bônus por altitude na chegada do gol.

Em Novembro passado, o Bureau do CIVL criou a obrigatoriedade do uso de live tracking e de 2 paraquedas reservas em competições do tipo Cat 1. Como alternativa para o uso de 2 paraquedas, será possível usar um único reserva que seja acionável por qualquer uma das mãos do piloto. Apesar de entrar em vigor apenas a partir de Maio de 2014, o Plenário recomenda que os pilotos se adequem a estas regras o mais rápido possível.

O Comitê de Parapente vai trabalhar agora na criação de uma nova licença IPPI para competições e na definição de habilidades e procedimentos obrigatórios para que os pilotos participem de eventos de Categoria 1 a partir de 2015.

Também ficou definido que o mundial de 2015 será em Roldanillo, na Colombia, de 10 a 25 de Janeiro.

Wings of Kilimanjaro

No dia 7 de fevereiro, o voador nepalês Sano Babu Sunuwar voou do topo do Kilimanjaro na Tanzânia.

Babu Sunuwar

Babu Sunuwar

Babu fez parte da expedição Wings of Kilimanjaro cujo objetivo era de reunir aventureiros de todo o mundo para subir o Monte Kilimanjaro, o ponto mais alto da África com uma altitude de 5 891,8 m no pico Uhuru, e decolar do topo.  Com este plano os organizadores esperavam levantar fundos para 3 instituições de caridade atuantes no leste da África: Plant With Purpose, WorldServe International and One Difference.

Topo do Kilimanjaro - Wings of Kilimanjaro

Topo do Kilimanjaro – Wings of Kilimanjaro

Babu foi o único dentre quase 100 pilotos a efetivamente decolar do topo. Vale a pena ler o relato do piloto disponível no blog: http://skyschooluk.blogspot.com.br/. Ele já havia tido a experiência de decolar do Monte Everest e conta que após algumas noites de acampamento próximo ao topo do Kilimanjaro aguardando melhores condições de decolagem, ele decide decolar de duplo com seu passageiro apesar do vento norte de 75 km/h. Levou 2 horas tentando decolar no rotor, já que fazê-lo encarando o vento seria impossível.

Durante o voo, que foi bastante turbulento, ele ficou dentro de uma nuvem por 45 minutos sem instrumentos, já que o frio havia inutilizado as baterias.

Babu planeja agora voar de mais 6 picos para completar a sua coleção que já conta com duas das montanhas mais altas do mundo: Everest e Kilimanjaro. Além disso, está focado no treino para voar o Red Bull X Alps em Julho.

O sertão pelos ares

Sete pilotos de parapente se reúnem no sertão nordestino com um objetivo ambicioso: quebrar o maior número possível de recordes mundiais de voo livre
Por Elisa Eisenlohr

CÉU DE BRIGADEIRO: O piloto Marcelo "Cecéu" Pietro, que integra a expedição

QUIXADÁ, CEARÁ, CINCO DA MANHÃ de uma segunda-feira de outubro: os pilotos já estão acordados antes de o sol nascer. O plano é tomar café, checar os últimos detalhes dos equipamentos e chegar à rampa de voo livre às seis, para decolar às seis e meia, se o vento permitir. Depois é só voar até o sol sumir novamente no horizonte, atravessando o Ceará, o Piauí e pousando no Maranhão. E o dia não termina aí: dependendo da distância percorrida, os pilotos terão que enfrentar a volta por terra, às vezes percorrendo de carro até 600 quilômetros em estradas sem asfalto. Essa foi a rotina de sete pilotos que se reuniram de 17 de outubro a 21 de novembro em um projeto de busca de recordes mundiais de distância em voo de parapente, com o apoio da marca brasileira de parapentes Sol Paragliders e da Volkswagen Amarok.

O cenário da odisseia foi a cidade de Quixadá, no interior do Ceará. O local é bastante conhecido de voadores mundo afora: todos os anos, durante a temporada de bons ventos, Quixadá recebe uma horda de gente em busca de recordes mundiais e pessoais. Na temporada, que vai de setembro a novembro, o sertão está mais seco, logo após o inverno, e o sol já começa a castigar. O clima seco é propício para a formação das térmicas, que são o “motor” dos voos de distância em parapente. O sol aquece a terra, que por sua vez aquece o ar da superfície, formando bolhas de ar quente que têm a tendência de subir. Os voadores aproveitam essa corrente ascendente para pegar uma carona para cima e depois planar na direção que o vento empurra.

Nessa região do Nordeste, o calor é tão forte que é possível decolar e se manter no ar assim que amanhece, enquanto em outras regiões o normal é decolar por volta de meio-dia, quando o solo já esquentou o suficiente para formar as térmicas. Outro fator que torna Quixadá especial nessa época do ano são os ventos alísios, que sopram velozmente empurrando os voadores na direção oeste, para o interior do país. Se as térmicas são o motor necessário para o voo de distância, o vento forte é o combustível aditivado para ir mais longe e mais rápido e, assim, quebrar os recordes. Quixadá se transforma, então, no Havaí do voo livre e recebe a visita de “surfistas” do mundo todo que vêm aproveitar o swell dos ares. Os voadores fazem expedições e passam dias a fio desbravando a região e praticando voo de cross-country, modalidade em que o piloto procura voar o mais longe possível.

ANDORINHAS: Os parapentistas da Sol Amarok

ANDORINHAS: Os parapentistas da Sol Amarok

O RECORDE MAIS COBIÇADO PELA EXPEDIÇÃO Sol Amarok é o recorde de distância livre, que atualmente é de 502,9 quilômetros e foi estabelecido na África do Sul por Nevil Hullet em 2008. O plano para superar a marca do sul-africano era seguir a estratégia criada pelos brasileiros que quebraram o recorde mundial de distância em 2007, voando 462 quilômetros em grupo. Na ocasião, os três experientes pilotos (Rafael Saladini, Marcelo Prieto “Cecéu” e Frank Brown) usaram uma estratégia simples e genial para superar o recorde mundial, que na época era de 423 quilômetros: voaram o tempo todo juntos.

“Eu queria quebrar o recorde mundial no Brasil, com equipamento nacional, e sabia que Quixadá seria o lugar perfeito para esse tipo de voo. Além disso, eu já havia percebido que, quando a gente formava ‘pelotões’, voando em grupo, o voo se tornava muito mais eficiente. Normalmente um pelotão voa mais rápido e consegue rastrear melhor as térmicas do que um piloto sozinho. Então juntamos alguns pilotos que tinham bastante afinidade entre si e começamos a fazer essas expedições no Nordeste em busca de recordes”, recorda Cecéu, o primeiro piloto do mundo a quebrar a barreira dos 400 quilômetros.

As expedições em busca de recordes mundiais no Nordeste tiveram início em 2003 e alcançaram resultados excelentes. “Evoluimos muito durante estes anos. Até então ninguém acreditava que podíamos sair para o cross-country às seis e meia da manhã e voar térmicas. Isso é algo que a gente desenvolveu na prática. Foram anos indo para o sertão, avaliando as nuvens, olhando como fazem os urubus e chegando à conclusão que dava, sim, para fazer. Foi uma quebra de paradigma. Decolar cedo assim só é possível em poucos lugares do mundo”, diz Cecéu.

Todo esse aprendizado, aliado à estratégia de voo em grupo, gerou bons resultados na Sol Amarok deste ano. A expedição já conquistou quatro recordes mundiais: de distância passando por três pontos solo, com 288 quilômetros; duplo, com 216 quilômetros; e dois voos com “gol” declarado (no qual é preciso declarar antes o local por onde se vai passar),  um com 420 quilômetros e outro com 423 quilômetros.

Piloto da equipe dos céus do Nordeste

Piloto da equipe dos céus do Nordeste

QUE BELEZA: A galera da expedição: acima.

QUE BELEZA: A galera da expedição: acima.

A ROTINA DA EXPEDIÇÃO não foi nada fácil: acordar antes de o sol nascer, decolar com vento forte na rampa e voar por até 11 horas a fio, em condições extremas que alternavam períodos de muito calor em baixa altitude e frio quando se subia alto em uma térmica. E com concentração máxima para evitar acidentes e para não errar colocando o sonho do recorde por água abaixo. Para participar de um feito como esse, é preciso não apenas bom preparo físico como ótima estrutura mental.

“Eu me preparei durante vários meses. Para a parte aeróbica, joguei tênis duas vezes por semana e fiz mountain bike nos outros dias. Também fui à academia todo dia, com exercícios específicos para a lombar e para o abdômen”, conta Frank Brown, dez vezes campeão brasileiro de parapente e um dos integrantes da expedição. Voar por tantas horas é muito cansativo. Uma boa alimentação e hidratação são essenciais para manter o corpo ágil e a mente alerta quando se está metros e metros acima do solo. “Em um voo, eu bebo dois litros e meio de água. Coloco um pouquinho de energético na água. Também como barras de proteína e tomo géis de carboidrato”, diz Frank.

Após o voo, os pilotos têm que percorrer todo o caminho de volta, que por terra se torna bem mais longo, muitas vezes passando por lugares onde nem estrada existe. É aí que está a importância da ajuda de um resgate experiente. “No dia do voo de 462 quilômetros, nosso resgate teve que cruzar o rio Parnaíba para pegar todo mundo lá no Maranhão”, lembra Caio Salles, diretor de produção e mídia da equipe. “É sempre um rally.”

Voos acima de 400 quilômetros não são muito comuns. Antes da expedição Sol Amarok, apenas nove voos desse tipo haviam sido realizados no mundo. Só nesta temporada no Brasil, já foram realizados 15 deles. Ou seja, na história do voo livre 24 voos acima de 400 quilômetros foram feitos até o momento, sendo que apenas cinco aconteceram fora do Brasil.

O país é mesmo o paraíso do voo livre, mas ainda não foi dessa vez que a equipe conseguiu ultrapassar a barreira dos 500 quilômetros. “Normalmente a gente bate os recordes em novembro, mas neste ano, quando novembro chegou, a condição já não estava boa. Tinha chegado a umidade, e o vento diminuiu no Piauí. Então não conseguimos quebrar o recorde mundial de distância livre, mas no ano que vem tem mais”, sonha Cecéu.
Asas do desejo
Conheça os parapentistas que participaram da expedição Sol Amarok

André Fleury > Instrutor de parapente de Brasília. Dizem os voadores que ele dá o curso mais “casca grossa” de voo do Brasil. Tem sete recordes mundiais de voo duplo de distância.

Claudia Otília > Ex-piloto de asa delta, voa de parapente há seis anos. Tem muita experiência em voos de distância no sertão, já que é dona de uma pousada para voadores em Santa Terezinha, no interior da Bahia, onde voa com os hóspedes fazendo o papel de guia.

Donizete “Bigode” Lemos > Atual vice-campeão brasileiro. É também campeão sul-brasileiro e três vezes campeão da Liga Nacional de Voos de Distância.

Frank Brown > Dez vezes campeão brasileiro de parapente.  Fez parte da equipe que quebrou o recorde mundial em 2007 com o voo triplo de 462 quilômetros.

Hernan Pitocco > O único argentino da equipe está entre os melhores do mundo na modalidade acrobacia aérea. Faz parte do time Red Bull, foi três vezes campeão argentino e quebrou recentemente o recorde mundial com 286 infinity tumblings (manobra que consiste em dar um looping completo com o parapente).

Marcelo “Cecéu” Prieto > Foi o primeiro piloto do mundo a ultrapassar a barreira dos 400 quilômetros. Tem três recordes mundiais no currículo.

Samuel “Samuka” Nascimento > É piloto de parapente desde 2003.  Em seu primeiro ano de competições, conquistou o título de campeão brasileiro em 2010.

Dioclécio “Dió” Rosendo > É coordenador-geral da expedição. Há 14 anos acompanhando pilotos pelo sertão brasileiro, é o resgate mais experiente do Brasil. É também um voador de alto nível e realiza voos de grandes distâncias.

* Para saber mais, acesse o site da expedição Sol Amarok em xcnordeste.com.br. Assista ao filme Ciclos, sobre os três pilotos que quebraram o recorde mundial em 2007, em www.filmeciclos.com.br.

(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de dezembro de 2012)